Titono, Teseu, Teletransporte e a Consciência

Sou um fã de ficção científica, muito pelo simples fato da existência e da construção dos questionamentos gerados pela evolução tecnológica e do exercício quase sempre sobre uma distopia, ou sobre paradigmas construídos dentro destas distopias. Mas uma destas distopias (ou destes paradígmas) acontecem sobre as possíveis consequências da possibilidade uma vida humana eterna.

Mas por que relacionar esses 4 assuntos do título podem ter a ver com essa questão: a vida eterna? Primeiro, vou explicar resumidamente cada um.

Titono

Tithonus e Eos de Francesco de Mura
Pio Monte della Misericordia, Nápoles, Itália

Titono: na mitologia grega, era irmão de um Rei de Tróia (Priamo) que despertou interresse da Deusa da Aurora, chamada de Eos, e recebeu a vida eterna de Zeus, a pedido dela. Mas Eos, apaixonada e de forma afobada, esqueceu de pedir, junto com a vida eterna, a juventude eterna. Assim, Titono envelhece eternamente, apodrecendo, sem mais se locomover, definhando, mas continuando vivo até que, em determinado momento, é transformado em cigarra pelo mesmo Zeus, como forma de encerrar essa tortura uma vez que a intenção, no fim, era de atingir Eos.

Teseu

Teseu depois de ter matado o Minotauro, libertando meninos atenienses cativos; Cretenses se aproximando para maravilhar a cena, afresco antigo de Pompéia

Teseu: também da mitologia grega, tem um paradoxo que leva seu nome. Um questionamento sobre identidade (no caso, de coisas inanimadas). Imaginem um navio de madeira, em uma viagem longa, à medida que vai sendo utilizado, suas partes de madeira, seus pedaços danificados ou apodrecidos, vão sendo trocados por novos. As peças que formam o navio originalmente em sua partida foram todas trocadas por outras novas no caminho, mantendo o navio sem afundar até a sua chegada. A discussão entre os filósofos, como Heráclito, Sócrates e Platão, se dá para compreender ou definir em que momento o Navio deixou de ser o Navio original, se ele é o mesmo. Se ele não é mais o mesmo, ele se transformou em outro Navio novo. Ele realmente é outro Navio, já que teve todas as suas parte trocadas? Mas ele não afundou no percurso, como fica? Ele deixou de ser o navio original (partida) e virou o barco novo (chegada)? Se sim, quando? Depois de trocar 51% das peças?

E se adaptássemos este paradoxo para a identidade humana? Poderíamos aplicar, de certa forma, imaginando o corpo humano com o navio de madeira e os pedaços de madeira como os órgãos que, hoje, podem ser substituídos por orgãos de outras pessoas compatíveis. E em um futuro próximo? Com o desenvolvimento de novos órgãos por células tronco ou totalmente artificiais? Ou até mesmo com a possibilidade da impressão 3D de novos órgãos, sob medida para cada indívíduo? Como ficaria esse questionamento?

Teletransporte humano

O teletransporte (uma máquina, equipamento para tal) é também uma ideia existente em algumas obras de ficção científica. Quem é fã de Star Trek (desde 1966) sabe bem do que estou falando. Quem viu o filme A Mosca (The Fly, 1986) também lembra? Também existente no filme Jumper (2008) ou até mesmo no filme O Grande Truque (The Prestige, 2006). Ok, neste último, falar de teletransporte é quase um spoiler. Mas a visão de que um equipamento tecnológico poderia ter a capacidade de transportar matéria orgânica na valocidade da luz, de modo que ela possa ser reconstruída a “mesma” matéria no ponto de chegada (ou destino). Leia-se “mesma” como a matéria geneticamente idêntica a do ponto de partida. Obviamente, a ideia é de que seres humanos sejam teletransportados mantendo a sua identidade, sua consciência, além da exatidão do corpo, da matéria.

Cenário do local de teletransporte na série Star Trek de 1966

Consciência

entramos no ponto da consciência. Que nos aflige ao longo dos séculos. A consciência (ou autoconsciência) é ainda o maior desafio de nossa existência. Compreendê-la. Descobrir onde ela existe, onde ela acontece. Quando ela se inicia? A partir de que momento de nosso desenvolvimento temos o estalo de que nós somos nós. Quando acontece o momento que nos dá a ideia de que estamos consciente de nossa identidade? A nossa consciência é até hoje a geradora dos nossos maiores questionamentos sobre nossa identidade. Por mais que possamos hoje, ou poderemos no futuro, criar ferramentas tecnológicas de transferência de nossa memória para outro humano ou mesmo da possibilidade de realizar o download de nossas lembranças e guardá-las em alguma mídia física, na núvem, será possível capturar nossa consciência para outro corpo ou mídia?

Todos ao mesmo tempo

Nesse momento vocês já devem estar relacionado todos os pontos do título entre si. E é esse debate teórico que gostaria de desenvolver aqui para que todos possam dar continuidade nessa problemática.

Temos hoje, neste momento da evolução da biotecnologia, a possibilidade clonar seres vivos, conforme foi apresentado em 1997 com o caso da ovelha Dolly. Apesar de ainda termos dúvidas da capacidade de clonagem humana (estamos em 2013), será que ela não poderá acontecer em um futuro não tão distante? Vamos imaginar que sim. Sendo assim, corpos gerados e desenvolvidos seguindo o mesmo manual de instrução orgânico da matriz original: o DNA de alguém já existente. (Sim, vamos deixar pra depois sobre detalhes de possíveis cicatrizes adquiridas, sinais de nascença retirados etc).

Somamos a isso, a existência de um equipamento que já estamos desenvolvendo e testando desde 1981: a impressão 3D de materiais inorgânicos. Dessa ideia, sabemos da existência de teste de equipamentos que possibilitam imprimirmos matéria orgânica.

Se considerarmos que hoje temos uma internet de alta velocidade, com cabos de fibra-ótica em velocidades acima de 233,2 Gigabits/segundo (Backbone RNP em 2010) e estimarmos a quantidade de informação de em um cérebro humano com suas memórias para a casa dos mais de 2.5 Petabytes (2.5 Milhões de Gigabytes)? Nos dias de hoje, demorariamos aproximadamente 1.340 milhões de segundos para transferir, pela internet (lembre-se da conversão de bits para bytes), não considerando uma possível criptografia, os dados de um cérebro humano de um ponto para o outro pela internet. Seriam 22.334 minutos, 372 horas ou 15 dias e meio, aproximadamente.

Sendo assim, se tivéssemos hoje toda a tecnologia de download de dados de nosso cérebro, digamos que, hoje, a velocidade para um teletransporte seria ainda um pouco demorada. Perderíamos ainda para os aviões, mas, competiríamos com outros meios de transporte, tradicionais.

Seguindo a lei de Moore, essas capacidades de velocidade de dados devem realmente multiplicar ao longo do anos, reduzindo drasticamente esses tempos para transmissão desses Petabytes cerebrais. Resolvida essa limitação da velocidade dos dados, viabilizando a transferência de 2.5 petabytes para alguns minutos no mesmo dia, o teletransporte poderia ser economicamente viável.

Mas aí começa a discussão que me interessa.

Consciência x Sociedade

Nossa identidade para nós mesmos e para sociedade. O que teríamos de problema? Diante da complexidade que é a nossa consciência, em tese, não capturável para download, teríamos que imaginar que em um teletransporte, nós morreríamos a cada partida.

Como assim, morreríamos? No ponto de partida, pouco antes de sermos desintegrados, as informações em nosso cérebro teriam sido copiadas e enviadas para o outro ponto: o de chegada. Neste ponto de chegada, os dados de nossas memórias, de nossas lembranças, seriam inseridas no novo corpo impresso, reconstruído, seguindo o nosso manual de instruções original, o DNA. Uma cópia do corpo perfeita teria sido criada na chegada, os dados inseridos no cérebro e este novo ser-humano que, ao se tornar consciente, iria, instantâneamente, consultar em seu cérebro todas essas memórias e, naturalmente, se convenceria de que ele é o mesmo ser-humano que entrou na máquina de teletransporte no ponto de partida.

Corpo de chegada

O paradoxo de Teseu se apresenta, mas aplicado a um ser vivo. As lembranças de sua memória é que irão convencer este novo ser vivo, gerado rapidamente pela máquina do teletransporte, que ele é o mesmo ser que foi destruído no ponto de partida. Mas, pensamos: o indivíduo da partida foi destruído e está morto. Sua consciência é impossível de ser transferida, ela se foi. Como então permitir isso? Como deixar que uma máquina seja capaz de matar seres-humanos para reconstruir outros seres-humanos em outro ponto do planeta (ou do sistema solar), com as memórias e lembranças retiradas dos indivíduos da partida e fazê-los assumirem outras identidades?

entra a visão da sociedade e a utilidade de uma ferramenta o sistema econômico como um todo.

Se pensarmos bem, parece ser irrelevante para toda a sociedade ao redor, de modo bem singelo, que o ser-humano do ponto de partida tenha morrido, uma vez que outro idêntico geneticamente e com todas as suas lembranças existirá no ponto de chegada. É útil. Através de uma lei, criada e aprovada com pressões dos lobbies, dos grupos com interesses comerciais e financeiros no uso da tecnologia (ou mesmo dos donos dessa solução revolucionária de transporte), se poderia chancelar e permitir essa transferência de identidade. Garantiria a existência civil deste no novo ser-humano criado no ponto de chegada. Funcionaria como um lei de transferência de identidade (e herança) entre seres-humanos com DNAs idênticos envolvidos nesse teletransporte. Ok, mas fica pra depois a diferenciação legal para gêmios univitelíneos.

Mas se pensarmos que: aceito pela sociedade ao redor, validada por lei essa transferência de dados de memória e a permissão de uso do manual de instruções genético (DNA), o ser-humano de chegada viverá com a certeza de que ele é o mesmo ser-humano da partida e toda a sociedade validaria essa situação. Interesses de todos satisfeitos (ou quase todos).

A vida eterna

Com o que descrevemos acima, no fim, em um exercício não muito profundo, chegamos ao ponto da viabilidade da vida eterna? Nesse exercício fictício, desprovido de limites de ética, de moral e dos limites tecnológicos, criamos uma máquina que desintegra um corpo na partida e transfere suas memórias e seu manual de instruções (DNA) pela rede de dados, para remontar um novo corpo e inserir os mesmos dados da memória retirados na partida, ao cérebro na chegada.

Assim, resolvidas as questões legais iniciais, seria então possível um ser-humano se manter vivo eternamente com suas memórias preservadas e repassadas para sempre em novos corpos? Mais que isso: o que impediria, com a evolução das técnicas de modificação genética (CRISPR em estudo desde 2000) a criação e o desenvolvimento de novos corpos humanos para receber essas memórias e, por vias legais, validar sua identidade original nesde novo corpo? Um mercado de corpos para serem utilizados como hospedeiros de uma memória de modo ad aeternum?

Artigo orignalmente escrito para o site Criação & Inovação em janeiro de 2013.

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